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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A débil - Cesário Verde - Lara Abreu

A DÉBIL


Eu, que sou feio, sólido, leal,

A ti, que és bela, frágil, assustada,

Quero estimar-te sempre, recatada

Numa existência honesta, de cristal.


Sentado à mesa dum café devasso,

Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,

Nesta Babel tão velha e corruptora,

Tive tenções de oferecer-te o braço.


E, quando socorreste um miserável,

Eu, que bebia cálices de absinto,

Mandei ir a garrafa, porque sinto

Que me tornas prestante, bom, saudável.


"Ela aí vem!" disse eu para os demais;

E pus-me a olhar, vexado e suspirando,

O teu corpo que pulsa, alegre e brando,

Na frescura dos linhos matinais.


Via-te pela porta envidraçada;

E invejava, — talvez que não o suspeites! -

Esse vestido simples, sem enfeites,

Nessa cintura tenra, imaculada.


Ia passando, a quatro, o patriarca.

Triste eu saí. Doía-me a cabeça.

Uma turba ruidosa, negra, espessa,

Voltava das exéquias dum monarca.


Adorável! Tu, muito natural,

Seguias a pensar no teu bordado;

Avultava, num largo arborizado,

Uma estátua de rei num pedestal.


Sorriam, nos seus trens, os titulares;

E ao claro sol, guardava-te, no entanto,

A tua boa mãe, que te ama tanto,

Que não te morrerá sem te casares!


Soberbo dia! Impunha-me respeito

A limpidez do teu semblante grego;

E uma família, um ninho de sossego,

Desejava beijar sobre o teu peito.


Com elegância e sem ostentação,

Atravessavas branca, esbelta e fina,

Uma chusma de padres de batina,

E de altos funcionários da nação.


"Mas se a atropela o povo turbulento!

Se fosse, por acaso, ali pisada!"

De repente, paraste embaraçada

Ao pé dum numeroso ajuntamento.


E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,

Julguei ver, com a vista de poeta,

Uma pombinha tímida e quieta

Num bando ameaçador de corvos pretos.


E foi, então, que eu, homem varonil,

Quis dedicar-te a minha pobre vida,

A ti, que és tênue, dócil, recolhida,

Eu, que sou hábil, prático, viril.




Neste poema de Cesário Verde é abordada uma das suas principais temáticas: a figura feminina e esta composição poética pode ser dividida em 3 partes.

Na primeira parte, que corresponde à primeira estrofe, o sujeito poético cria uma relação imaginária com a mulher do meio citadino (“Quero estimar-te, sempre, recatada” v.3) e, na segunda parte, que vai da 2ª à 12ª estrofe, é efetuada a observação do espaço que o envolve, sendo apresentada uma mulher que, perante toda a decadência e corrupção da cidade, o salva de se afundar nos males (“Que me tornas prestante, bom, saudável” v.12). Por fim, na terceira parte, correspondente à 13ª estrofe, está presente uma dedicatória do sujeito poético à figura feminina: o “eu” dedica-lhe a sua vida (“Quis dedicar-te a minha pobre vida” v.50).

Quanto à descrição efetuada da jovem, o sujeito poético descreve-a como uma figura que contrasta com a típica mulher deslumbrante e provocante, o que a faz sobressair no meio citadino, não pela sua excentricidade, mas pela sua pureza e simplicidade. Com efeito, a nível psicológico, a mulher é caracterizada como frágil, assustada (v.2) recatada (v.3), honesta (v.4), fraca (v.6), natural (v.25) e adorável (v.26), enquanto, a nível físico, é descrita como bela (v.2), de cabelos loiros (“loura” v.6), corpo delicado (“o teu corpo que pulsa, alegre e brando” v.15), cintura estreita (“nessa cintura tenra, imaculada” v.20), adorável (v.25), elegante e modesta (“com elegância e sem ostentação” v.37) e de pele branca (v.38). Esse retrato associa-se à imagem de uma mulher do campo que se encontra em um ambiente desconhecido que não é adequado à sua fragilidade, necessitando assim da proteção masculina.

 Relativamente ao espaço citadino, este é caracterizado de forma negativa, sendo que aqui se movimentam figuras sórdidas, que o “eu” caracteriza por "turba ruidosa, negra" e por "uma chusma de padres de batina". Esta caracterização evidencia a vulnerabilidade da jovem, que, com a sua presença, torna o ambiente mais luminoso e atraente. Admirando-a profundamente, o sujeito poético sente o seu coração preenchido por um amor que lhe traz alegria, mas vê-se indigno dessa figura tão elegante e humilde, reconhecendo-se como "feio, sólido, leal". Ao ter um estilo de vida decadente, marcado por locais como cafés devassos onde afoga as suas mágoas em cálices de absinto (vv.9-10), ele deseja mudar. Inspirado por esta figura que torna os seus dias menos obscuros, aspira a tornar-se "hábil, prático, viril" para a proteger da mediocridade do meio urbano que ameaça consumi-la, ameaça esta que se manifesta nos elementos da sociedade cujos hábitos e comportamentos se desviam da simplicidade, incluindo tanto os homens de riqueza e nobreza, com a sua arrogância e ostentação, quanto o povo comum, que, apesar de humilde, não se comporta da maneira que o sujeito poético considera adequada.

Relativamente aos recursos expressivos, é possível verificar uma antítese entre “feio, sólido, leal” e “bela, frágil, assustada”, nos versos 1 e 2, que enfatiza a fragilidade da mulher representada e o facto de o sujeito poético não se sentir merecedor dela; uma metáfora (“Numa existência honesta, de cristal” v.4) que, ao comparar a existência da jovem ao cristal, sugere que ela se trata de algo precioso, puro e delicado, mas também extremamente vulnerável. Além disso, no verso 34, é utilizada outra metáfora (“A limpidez do teu semblante grego”), que combina duas imagens poderosas: a de limpidez, que sugere pureza e transparência, e o semblante grego, que evoca a beleza clássica e idealizada das esculturas e do perfil grego, associado à serenidade, equilíbrio e perfeição estética, transmitindo a ideia de um rosto que transmite clareza de sentimentos e talvez até uma beleza clássica, que lembra as representações da Grécia Antiga, onde as formas são simples e equilibradas; nos versos 47 e 48, está presente uma antítese metafórica entre “uma pombinha tímida e quieta” e “bando ameaçador de corvos pretos” para intensificar a oposição entre a pureza da mulher e o espaço cruel em que esta se encontra; e, nos versos 51 e 52, está presente outra antítese entre “ténue, dócil, recolhida” e “hábil, prático, viril”, que é utilizada com o mesmo objetivo da antítese presente no primeiro parágrafo.  De acrescentar que, ao longo do poema, são utilizadas várias adjetivações expressivas e enumerações que realçam as características belas da jovem.



ANÁLISE FORMAL

Esta composição poética é constituída por 52 versos, distribuídos por 13 quadras. 

O poema apresenta o seguinte esquema rimático, sendo a rima interpolada em A e emparelhada em B, etc.

Quanto ao som, apresenta rima consoante (ex: “assustada”/”recatada” vv.2-3).

Quanto às palavras que rimam entre si, a rima é predominantemente pobre (ex:”miserável”- adjetivo /”saudável” - adjetivo), mas também se encontra rima rica (ex: “leal” - adjetivo /“cristal” - nome).

Quanto à métrica, todo o poema é constituído por versos decassilábicos (“Eu, | que | sou | fe | io | só | li | do | le | al |” v.11), uma vez que apresentam 10 sílabas métricas.


ANALOGIA COM OUTROS TEXTOS

É possível fazer uma analogia entre o poema “A débil”, de Cesário Verde, e o poema “À une passante”, de Charles Baudelaire, na medida em que Baudelaire, assim como Cesário Verde, observa uma figura feminina e reflete sobre a fragilidade e o breve da vida. No poema, uma mulher desconhecida passa pelo poeta, e essa figura torna-se uma representação da beleza transitória e da solidão urbana. Ambos os poemas trazem uma visão da mulher que não é apenas física, mas também simbólica, refletindo o sentimento de perda e a sensação de algo inalcançável. 


À une passante (original) La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse , Une femme passa, d’ une main fastueuse Soulevant, balançant le feston et l’ourlet; Agile et noble, avec sa jambe de stautue. Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan, La douceur qui fascine et le plaisir qui tue. Un éclair…puis la nuit! – Fugitive beauté Dont le regard m’a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l’eternité? Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! “jamais” peut-être! Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!



Tradução:


A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

Uma mulher passou, com sua mão vaidosa

Erguendo e balançando a barra alva da saia;


Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.

Eu bebia, como um basbaque extravagante,

No tempestuoso céu do seu olhar distante,

A doçura que encanta e o prazer que assassina.


Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade

De um olhar que me fez nascer segunda vez,

Não mais te hei de rever senão na eternidade?


Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!

Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,

Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!



recursos utilizados:


https://pt.slideshare.net/slideshow/a-debil-cesario-verde/21219884


https://poemassemerros.wordpress.com/2017/12/04/a-une-passante-baudelaire/


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